+55 11 97397-0855
·
contato@fregni.com.br

O dever geral de boa-fé e o papel do juiz nos negócios jurídicos

O marco histórico da “era das codificações” é o Código Civil francês (Code Napoléon), datado de 1804, o qual buscou unidade da legislação por meio de um único código, instituído pelo Estado e marcado pelos ideais de liberdade e igualdade. O Código Civil francês nasceu com a Revolução Francesa de 1789, visando a romper com a difusão normativa havida no Antigo Regime [1].

O modelo francês foi profundamente marcado pela grande importância dada ao código. A denominada “era da codificação” buscou romper com a difusão normativa vigente no Antigo Regime, cujas leis possuíam vigência temporal e espacial conforme as diferenças locais e territoriais. O Direito Civil francês, então, buscou unidade, generalidade e abstração.

Como afirma Cláudia Lima Marques [2]“marco da história do direito, esta codificação, (…) coloca como valor supremo de seu sistema contratual a autonomia da vontade, afirmando, em seu artigo 1.134, que as convenções legalmente formadas têm lugar das leis para aqueles que as fizeram”.

De modo totalmente distinto, o Código Civil alemão (BGB), após a reforma legislativa de 2001/2002, apresentou um modelo de sistema com maior abertura e mobilidade. De acordo com Reinhard Zimmermann [3], o Código Civil alemão (BGB), ao regulamentar a boa-fé em seus artigos §242 e §157, apresentou novos elementos à compreensão do sistema codificado do Direito Civil e da própria relação obrigacional.

O Direito Contratual adota, então, como diretriz, a ordem constitucional. É a perspectiva civil-constitucional, na qual a ética da liberdade é substituída por uma ética solidária em que vigora a responsabilidade, a cooperação e a lealdade.

Assim, a teoria do negócio jurídico desenvolvida na Alemanha avançou em relação à concepção voluntarista francesa e passou a caracterizar o negócio jurídico como comando concreto. As ideias de sinalagma, equilíbrio e adequada distribuição de riscos tornaram-se elementos fundamentais na definição da relação negocial.

Como se sabe, a regulamentação do ideal de boa-fé nasceu com os §157 e §242 do Código Civil alemão (BGB), que serviram como inspiração para a legislação de diversos países. Naquele momento foi concedida força normativa a um ideal de moralidade, o que, no Direito brasileiro, está estabelecido pelos artigos 421, 187 e 113 do Código Civil.

Entre as funções do princípio da boa-fé está a de assegurar a justa confiança dos contratantes, direcionando positivamente a interação negocial e estabelecendo regras éticas elementares a serem aplicadas aos contratos, com vistas a assegurar um efetivo padrão de credibilidade entre os contratantes.

Além disso, o dever geral de boa-fé atua como cláusula protetiva contra práticas abusivas e protege a dignidade da pessoa humana, estabelecendo a denominada autoestima social.

O princípio da boa-fé centra-se fundamentalmente no comportamento contratual das partes e na interpretação dos atos efetivados em âmbito negocial. O principal modo de aplicação do princípio da boa-fé se dá por meio do preenchimento de lacunas dos negócios jurídicos.

Fato é que o princípio da boa-fé estabelece um padrão de comportamento considerado probo, reto e leal e se impõem das seguintes maneiras: interpretativa, para se atingir um justo equilíbrio; supletiva, por meio da imposição de deveres acessórios, como sigilo, colaboração, proteção de dados, devolução de documentos etc.; e corretiva, para o fim de proteger a parte mais fraca.

E, em toda a vigência do contrato, das tratativas à sua extinção (em momento posterior à conclusão), nascem direitos e deveres resultantes da obrigação de boa-fé. O Código Civil brasileiro não previu expressamente esta extensão da cláusula da boa-fé objetiva. Mas, ao inserir o artigo 422 na parte geral, complementado pelo artigo 113, o legislador pretendeu justamente expressar a vigência das obrigações contratuais para além da extinção do pacto, admitindo a dinamicidade das relações negociais e de seus efeitos.

Para Antonio Junqueira de Azevedo [4], são três as funções da cláusula de boa-fé objetiva:

1) Função adjuvandi, ou seja, auxilia na interpretação do contrato;

2) Função supplendi, que busca suprir falhas e acrescentar ao contrato o que nele não está incluído. Com relação a essa função, vale ressaltar os deveres anexos ao vínculo principal criados pela cláusula geral de boa-fé, especialmente o dever de informar, de manter sigilo e de avisar imediatamente se houver perda de interesse no negócio, além dos deveres de colaboração e de cooperação.

3) Função corrigendi, destinada a corrigir o contrato visando a atingir o sentido de justo. Essa função procura envolver as cláusulas abusivas.

Conforme ensina Antonio Junqueira de Azevedo, as partes devem respeitar não só aquilo que convencionaram como também tudo o que resulta da natureza do contrato, da lei, dos usos e das exigências da razão e da equidade. Ou seja, o contrato não produz somente os efeitos convencionados entre as partes, mas cria outros que, do contrato, decorrem implicitamente.

Por outro lado, na aplicação do princípio da boa-fé o juiz passa a ser o centro do sistema. Conforme esclareceu Judith Martins Costa, ao aplicar as cláusulas gerais, a atividade do juiz não é arbitrária, mas vinculada e busca atingir certas pautas de valoração do caso concreto [5]. Mas essa não é uma tarefa simples, pois exige uma análise sistemática da legislação, dos princípios aplicáveis de acordo com a natureza do contrato e da situação concreta.

De acordo com Karl Engish [6], houve um tempo em que se acreditou ser possível obter a clareza e a segurança absoluta das leis através de normas rigorosamente elaboradas. O juiz seria o escravo da lei. Porém, verificou-se que somente a liberdade de decisão poderia dominar a pluralidade da vida e sua imprevisibilidade. Atualmente, ainda conforme o pensamento de Karl Engish, o juiz não fundamenta suas decisões apenas por meio da subsunção dos fatos a conceitos jurídicos fixos, mas deve valorar, entender a dinamicidade da realidade concreta e buscar os desígnios do negócio jurídico  e o equilíbrio econômico ali estabelecido.

Dessa forma, as cláusulas gerais, como boa-fé e função social do contrato modificam a tradicional e assentada atividade de subsunção, para trazer ao ordenamento ideais éticos e voltados ao bem comum. E a relação contratual que não estiver pautada em um comportamento ético dos seus agentes em todas as suas fases, torna-se contrária ao regramento constitucional vigente e ao modelo adotado para o direito das obrigações.

Conforme esclarecem Guido Alpa, Mario Bessone e Enzo Roppo [7], o juiz, mesmo diante de eventos previsíveis, deve recorrer à interpretação e integração do contrato para efetivar a administração do risco e controlar prestações que se tornem excessivamente onerosas. É que, de acordo com o sistema vigente, a cláusula geral da boa-fé deve se sobrepor até ao quanto estabelecido contratualmente em ambiente privado.

Assim, cabe a integração judicial dos contratos diante de situações que ocasionem os desequilíbrios à economia do contrato, ainda que essas situações sejam, sob certa ótica, previsíveis.

É que a concepção atual do negócio jurídico estabelece que este não advém do mero vínculo contratual entre as partes, mas trata-se de um instrumento da economia, que tem como norte a ética, os deveres de colaboração, equidade e a racionalidade econômica, além de ter os princípios da dignidade humana e a da solidariedade social como destino final.

 

Referências bibliográficas
ALPA, Guido; BESSONE, Mario; ROPPO, Bessone. Rischio contrattuale e autonomia privada. Napoli: Jovene, 1982.

AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Insuficiências, deficiências e desatualização do Projeto de Código Civil na questão da boa-fé objetiva nos contratos. Revista dos Tribunais, v. 775, São Paulo: RT, maio 2000.

ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Tradução de J. Baptista Machado. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.

LÔBO, Paulo. A constitucionalização do direito civil brasileiro. In: (coord.) TEPEDINO, Gustavo. Direito civil contemporâneo. São Paulo: Atlas, 2008.

MARTINS-COSTA, Judith. Contratos no Código de Defesa do Consumidor — o novo regime das relações contratuais. 4. ed. São Paulo: RT, 2004.

____________. Da boa-fé no direito privado. São Paulo: RT, 2000.

____________. O direito privado como um sistema em construção. In: Revista de Informação Legislativa nº 35, Brasília, 1998.

PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução do direito civil constitucional. Tradução de Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.

Zimmermann, Reinhard. Codification — the civilian experience reconsidered on the eve of a common european sales law. In: European Review of Contract Law (ERCL), v. 8, n. 4, 2012; Max Planck Private Law Research Paper nº 12/30.  Disponível em: http://ssrn.com/abstract=2166765. Acesso em: 13 maio 2019.

 

[1] MARTINS-COSTA, Judith. Da boa-fé no direito privado. São Paulo: RT, 2000, p. 174.

[2] MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor — o novo regime das relações contratuais. 4. ed. São Paulo: RT, 2004, p. 62.

[3] Zimmermann, Reinhard. Codification — the civilian experience reconsidered on the eve of a common european sales law. In: European Review of Contract Law (ERCL), v. 8, nº 4, 2012; Max Planck Private Law Research Paper nº 12/30.  Disponível em: http://ssrn.com/abstract=2166765. Acesso em: 13 maio 2019, p. 375.

[4] AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Insuficiências, deficiências e desatualização do Projeto de Código Civil na questão da boa-fé objetiva nos contratos. Revista dos Tribunais, v. 775, São Paulo: RT, maio 2000, p. 14.  

[5] MARTINS-COSTA, Judith. O direito privado como um sistema em construção. In: Revista de Informação Legislativa nº 35, Brasília, 1998.

[6] ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Tradução de J. Baptista Machado. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.

[7] ALPA, Guido; BESSONE, Mario; ROPPO, Bessone. Rischio contrattuale e autonomia privada. Napoli: Jovene, 1982, p. 351-360.

Posts Relacionados